segunda-feira, junho 14, 2010

O índio de mentira


Uma versão do famoso ato do apóstolo são Tomé (ver e então crer) tem sido praticada com entusiasmo cada vez maior pela grande mídia e seus espectadores. Nessa versão, o ato de ver (ou ler) exige a imediata crença no visto ou no lido. O curioso é que, se reprovamos em são Tomé a falta de fé, o pecado da nova versão é o excesso. Ou a falta de visão crítica. Mire-se no exemplo da revista semanal que atende pelo apropriado nome de Veja. A revista atingiu o cúmulo do neo-sãotomeísmo em sua matéria especial “A farra da antropologia oportunista” (edição 2163, de 05/05/2010). Não custa ver com os próprios olhos um trecho no início da matéria que, creia, diz assim: “Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil. Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária, as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o total alcança 90,6% do território nacional.”.

O texto é indubitável. Apresenta o fato assombroso, embrulhado em precisos percentuais, de que índios, quilombolas e camponeses (que pensávamos ser a porção marginalizada do Brasil), somados à cobertura de mata virgem cada vez mais reduzida (não me pergunte como obras de infraestrutura entram na conta), tomaram conta do país, numa épica revolução silenciosa. O que sabemos sobre 500 anos de massacres, subjugações e humilhações dos índios no Brasil é pura ilusão. Devemos crer que os verdadeiros brasileiros estão acuados e quase expulsos pela indiada ressurgida das cinzas. 

A matéria segue dando asas a uma imaginação fértil e perversa, denunciando a “indústria da demarcação” que enche de dinheiro o bolso de antropólogos e índios. Numa redação, digamos, ousada, o texto desfila subtítulos que na minha terra seriam considerados maximamente preconcei-tuosos: “Os novos canibais”, “Macumbeiros de cocar”, “Teatrinho na praia” (índios fantasiando-se de índios!), “Made in Paraguai”, “Os carambolas” (os supostos quilombolas!). 

Não há o que comentar. O visto fala por si.

Há questões graves aí: a matéria desrespeita a boa prática jornalística (o trato com os fatos e pessoas reportados); desrespeita toda uma classe profissional (os antropólogos); e assume a defesa clara (e invisível) dos interesses mais predatórios, que avançam insaciavelmente sobre índios e terras desde que somos Brasil. Tudo isso é muito sério mas quero frisar uma quarta questão. Crer à primeira vista só é possível quando a mídia mostra o que queremos ver. Por mais miseráveis e desarmados de suas culturas pelas frentes de civilização, o índio sempre continuou sendo índio. E isso nós não aceitamos! Como os demais povos que fizeram o Brasil e, bem ou mal, se abrasileiraram, queremos que o índio faça o mesmo. Nos roemos de raiva com a insistência do índio em ser índio, e, ao ridicularizá-lo, a Veja nos dá o meio de revidarmos. Acredite quem quiser. 

 Publicado em O Tempo, 13/06/10